A Convivência é uma ilha – pesquisa-criação em territórios instáveis

“A Convivência é uma ilha” é um projeto de pesquisa performativa, envolvendo teatro, artes visuais, museologia social e arte ambiental. Com foco na atuação contextual em territórios instáveis impactados por catástrofes ambientais ou políticas de remoções e especulação imobiliária. 

Trata-se de uma pesquisa de pós-doutorado em andamento desenvolvida pelo artista-pesquisador Dr. Fernando Codeço com a supervisão do professor, artista e pesquisador Dr. Sérgio Andrade, e realizado através da parceria de Encontros Hemisféricos, organizada pela York University, do Laboratório de Crítica e pelo Programa de Pós-Graduação em Dança da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e apoiado pelo Conselho de Pesquisa em Ciências Sociais e Humanas do Canadá (SSHRC).

Esse projeto dá continuidade às pesquisas iniciadas por Codeço durante a escrita de sua tese de doutorado “Teatralidades da Erosão – ensaios sobre ecofagias, desfigurações e naufrágios” (defendida em 08/06/2021 junto ao Programa de Pós-Graduação em Artes Cênicas da UNIRIO e em cotutela com o Centre de Recherches en Arts et Esthétique da Université de Picardie Jules Verne em Amiens na França) que foi uma  investigação criativa, analítica e conceitual a partir da convivência com o fenômeno socioambiental da erosão marinha que há mais de 70 anos atinge a praia de Atafona, localizada no município de São João da Barra no norte do estado do Rio de Janeiro. A partir da ideia popular de que “o mar come as casas” e o território de Atafona, Codeço criou a noção de “ecofagia” como uma metáfora existencial, um campo de experimentação estética e um modo de crítica cultural em tempos de colapso ambiental. E junto com os coletivos CasaDunaGrupo Erosão, desenvolveu uma série de trabalhos artísticos, dentre eles o projeto Museu Ambulante; tema da pesquisa de pós-doutorado desenvolvido junto ao Programa de Pós-Graduação em Políticas Sociais da Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro – UENF e realizada nos anos de 2021 e  2022. 

CASADUNA e GRUPO EROSÃO

A CasaDuna é um projeto independente que foi fundado por Codeço e pela filósofa e pesquisadora Dra. Julia Naidin e funciona como um grupo de pesquisa em artes e uma produtora cultural, inicialmente dedicada a desenvolver projetos relacionados ao fenômeno da erosão costeira que atinge a foz do rio Paraíba do Sul na praia de Atafona em São João da Barra, mas que se expande hoje para outros territórios. 

A CasaDuna faz um trabalho de pesquisa, curadoria e arquivamento a partir de materiais  e memórias, agrupando documentos, livros, jornais, depoimentos e imagens antigas da área que já foi levada pelo mar.  Esse acervo contém mais de 300 imagens históricas da região e livros raros adquiridos do artesão Jair Vieira que reuniu este material ao longo de 40 anos, centenas de recortes de jornais com reportagens sobre a região reunidos pela Dona Marilda que tinha uma pequena banca de jornal em Atafona, entre outros acervos doados ou cedidos. Além disso, desde 2017, estamos registrando em fotos e vídeos todas as atividades culturais realizadas pela CasaDuna, realizamos fotografias periódicas da paisagem e entrevistas com moradores, material que já constitui um acervo de cerca de 2 Terabytes. 

O Grupo Erosão é um coletivo de performance dirigido por Codeço e integrado pelas performers Lucia Talabi, Jailza Motta, Rachell Rosa, Julia Naidin e Mariana Moraes, o cenógrafo Rafael Sánchez, o antropólogo e ator Paul Macalli e o coreógrafo e bailarino Guilherme Mattos. O Grupo Erosão é responsável pela parte de criação e execução de projetos artísticos da CasaDuna,  e se utiliza das linguagens da performance, do teatro de rua, do vídeo, das artes visuais e da museologia social. 

A CasaDuna atende pela pela produção executiva dos projetos, realiza pesquisas acadêmicas e coordena as residências de arte e faz as curadorias das exposições. Os dois coletivos foram criados em 2017 e (juntos ou separados) já apresentaram trabalhos em importantes espaços culturais e festivais no Brasil e no exterior. 

ATAFONA

A praia de Atafona está localizada no município de São João da Barra, na região no norte do Estado do Rio de Janeiro, na foz do rio Paraíba do Sul. Nesta praia vive uma antiga comunidade de pescadores, seu balneário é muito apreciado por turistas da cidade vizinha, Campos dos Goytacazes, responsáveis pela construção da maioria das casas de veraneio que se encontram mais próximas ao mar. Atafona também é conhecida por sofrer um processo de erosão costeira intenso, já tendo perdido parte expressiva de seu território para o mar. Desde a década de 1960 a erosão destruiu mais de 15 ruas e 500 construções na localidade, criando um drama ambiental. O problema da erosão que afeta Atafona é, entre outros fatores, agravado pelas diversas ações antrópicas degradantes do rio Paraíba do Sul, a principal delas foi a barragem feita na década de 1950 que desviou cerca de 2/3 de suas águas para o rio Guandu para a criação de uma hidrelétrica e o abastecimento de água da região metropolitana da cidade do Rio de Janeiro.  A degradação do rio Paraíba do Sul é também reflexo da perda de consciência da importância socioambiental do rio, um dos objetivos da CasaDuna é o de promover essa consciência ambiental crítica e integrada em estreito diálogo com as comunidades ribeirinhas.

A CONVIVÊNCIA É UMA ILHA

Este projeto dá continuidade ao trabalho desenvolvido por Codeço e Grupo Erosão em Atafona, agora incluindo a pesquisa em outros territórios que vivem situações semelhantes de desestabilização extrema, como é o caso do distrito do Açu, também em São João da Barra, marcado por um processo violento de neoextrativismo a partir da instalação do Complexo Industrial Portuário do Açu, com muitas violações dos direitos humanos, crimes ambientais e remoção de famílias de pequenos agricultores. A pesquisa vai abordar também a história do assentamento Cícero Guedes do MST no município de Campos dos Goytacazes localizado na da propriedade da antiga usina de açúcar Cambahyba e territórios impactados por remoções ligadas a megaeventos na zona portuária e na zona oeste do Rio de Janeiro, como o caso da Vila Autódromo, comunidade que sofreu um processo violento de remoção com a justificativa de obras para os Jogos Olímpicos de 2016. O que há em comum entre estes territórios é a instabilidade a que são submetidos seus moradores, seja por fatores políticos, sociais ou ambientais, por isto utilizamos a noção de “territórios instáveis” para nos referir aos locais focos de interesse dessa pesquisa.

Este projeto propõe uma pesquisa performativa processual e transdisciplinar, envolvendo teatro, performance, museologia social e arte ambiental. O projeto será conduzido por Codeço em colaboração com o Grupo Erosão e se baseará principalmente nos acervos constituídos pela CasaDuna e pelo Museu das Remoções da Vila Autódromo na Zona Oeste do Rio de Janeiro. 

A proposta é criar a partir da colagem de fragmentos de histórias de vida de pessoas que tiveram seus territórios ameaçados seja por processos neo extrativistas e/ou em decorrência de alterações ambientais, tais como as vividas por Dona Belita que se manteve morando na extinta ilha da Convivência em Atafona, no delta do rio Paraíba do Sul, até o final de sua vida centenária, mesmo depois de perder 7 casas para o mar; e o de Dona Noêmia Magalhães, liderança entre os pequenos agricultores impactados pelo Porto do Açu; e Dona Penha liderança da comunidade Vila Autódromo que resistiu ao violento processo de remoção promovido pela prefeitura do Rio de Janeiro. Foi no processo de resistência às remoções na Vila Autódromo que nasceu o Museu das Remoções, um projeto de museologia social com o qual vamos estabelecer parceria no decorrer desta pesquisa. 

Estamos realizando um processo permeado por encontros e vivências entre integrantes do Grupo Erosão e moradores dos territórios atingidos pela erosão ou políticas de remoção, utilizando a performance como ferramenta de escuta, produção de saber oral, espaço de encontro e aprendizado coletivo de formas de resistência aos processos de extrativismo e degradação ambiental. Todo o processo de criação está sendo realizado a partir de ações performáticas pensadas em colaboração com o Grupo Erosão e moradores e/ou lideranças dos territórios instáveis escolhidos para o desenvolvimento da pesquisa. Todo processo está sendo registrado, gerando farto material para publicações e produções audiovisuais, tanto a partir dos depoimentos das personagens reais com quem vamos estabelecer interlocuções, quanto a partir das reflexões teóricas criadas. Além disso, será criada uma palestra-performance sobre este processo criativo, que será apresentada por Codeço em ambiente virtual e/ou presencialmente em possíveis intercâmbios com outras universidades, congressos e seminários.

O ESPETÁCULO PERFORMATIVO

Este projeto ganhou o edital da Lei Federal Paulo Gustavo – “Apoio ao Teatro – Evoé RJ” da Secretaria de Estado de Cultura e Economia Criativa do Estado do Rio de Janeiro. com este edital será financiado a criação e realização do espetáculo de teatro performático “A Convivência é uma ilha” do Grupo Erosão com direção de Fernando Codeço e produção da CasaDuna. O cenário do espetáculo será em forma de videoinstalação que poderá ser visitada pelo público antes e/ou depois da encenação. O projeto será realizado em 4 etapas: 1. “Ensaios Filmados”: momento de investigação/preparação em salas de ensaio, as cenas e processos serão filmadas pelo próprio elenco e direção e posteriormente editados e incorporados ao cenário/videoinstalação; 2. “Residências artísticas”: são imersões criativas onde o grupo vai realizar e registrar uma série de performances e oficinas nos “territórios instáveis” 3. “Encenação/videoinstalação”: momento em que será construída a dramaturgia do espetáculo junto com a edição do material audiovisual para a videoinstalação; na etapa 4. serão realizados os ensaios gerais, estreia e apresentações. O espetáculo se dará na fronteira entre a ficção e o documentário e se utilizará das linguagens do teatro, da performance e do vídeo. Serão 3 apresentações com duração aproximada de 1h30min cada no Teatro de Bolso Procópio Ferreira em Campos dos Goytacazes. Ao final das apresentações serão propostas conversas com lideranças comunitárias convidadas. A estreia está prevista para o mês de junho.

Metodologia de trabalho

O trabalho tem múltiplos enfoques envolvendo pesquisas nas seguintes linguagens: expressão corporal, atuação cênica, produção audiovisual, videoinstalação, pesquisa de arquivo, pesquisa de campo, escrita dramatúrgica e vivências performativas. Essas pesquisas se darão de modo simultâneo e des-hierarquizado. 

Cada integrante do grupo tem sua própria plataforma de pesquisa, que será orientada pelo universo de suas respectivas personagens. Cada performer do grupo vai produzir elementos para a sua própria “ilha de edição” compondo um universo de imagens, sons, reflexões, formas corporais que se relacionem com as questões das personagens da fábula e da metafábula que lhe serão indicadas. (Os materiais produzidos nas ilhas de edição de cada performer poderão vir a ser incorporados na videoinstalação final do trabalho). O foco do trabalho não será na interpretação mimética que vise representar as personagens. Ao contrário, a investigação vai ocorrer no sentido de aproximar os conflitos vividos pelas personagens aos vividos pelas performers. Em outras palavras, cada performer vai atuar buscando aproximar as personagens, seus conflitos e a relação (ou não-relação) desses conflitos com sua própria vida. 

A dramaturgia vai operar por processos corais e polifônicos, apresentando diferentes perspectivas de uma mesma cena. As performances/cenas serão criadas a partir do conteúdo produzido nas pesquisas individuais das performers do Grupo Erosão em suas “ilhas de edição” e através de três etapas de trabalho: os “ensaios filmados”, as “vivências performativas” e a “edição corpo/cena/videoinstalação”.

Os “ensaios filmados” são os momentos de investigação/preparação em que o Grupo estará trabalhando em salas de ensaio sem a interferência de elementos externos. Nomeamos ensaios filmados porque eles de fato serão registrados pelos próprios integrantes do grupo, não apenas como forma de registro, mas como elemento cênico e pesquisa de linguagem. A cada ensaio vamos produzir vídeos que vão compor por sua vez a “ilha de edição” da equipe de direção. A proposta é que a cada ensaio seja trabalhado simultaneamente a pesquisa corporal das performers, formas de produção fotográfica, e relações entre as performances dos corpos com as imagens projetadas. Os ensaios filmados serão uma etapa importante de preparação para as “vivências performativas”.

As “vivências performativas” serão imersões realizadas pelo Grupo Erosão nos seguintes “territórios instáveis”: Praia de Atafona e distrito do Açu no município de São João da Barra, assentamento Cícero Guedes no município de Campos dos Goytacazes e Vila Autódromo (Museu das Remoções) na Zona Oeste do Rio de Janeiro. Em cada imersão serão realizadas um conjunto de ações performativas em diálogo com moradores dos territórios instáveis. As ações performativas vão operar na fronteira entre a ficção (a fábula) e o documental (a metafábula). A fábula não será narrada de modo linear, mas sim de maneira fragmentada, por uma operação de edição/colagem que será feita na terceira etapa do processo, quando serão aproveitados fragmentos dos vídeos produzidos nos ensaios filmados e nas vivências performativas, que vão compor a videoinstalação, e acrescidos textos e encenações que serão apresentadas ao vivo durante a performance.